Uma cor invisível: os negros deste país
Por Guto Alves
O Brasil é um país de belas praias com negros vendendo amendoim. De bons restaurantes com negros servindo a comida. Com belas casas com negros limpando. De favelas glamourizadas com negros morrendo.
Dia desses fui ao shopping almoçar. Nunca me sinto muito confortável — já fui um habitué, é verdade, mas hoje já não me sinto bem em nenhum lugar caro. Vou, mas sinto certo desconforto por não me sentir dali. Aproveito para observar as pessoas e o malabarismo social que todos exercem para permanecer em seus devidos papeis.
Minha substância para viver é o bicho que somos. Por isso eu gosto muito de observar, de estar atento e enxergar os jogos cênicos que desenvolvemos. Faço isso não só como forma de estocar histórias e personagens, mas fundamentalmente para tentar entender como funciona cada ser dentro da nossa diversidade. No meio deste exercício, achei importante relatar o que vem a seguir. Os negros seguem invisíveis neste país e é sobre isso que quero falar.
É importante ressaltar que este é apenas um relato, longe de um grande debate que tem que ser feito, levando em consideração as diversas nuances do racismo estrutural brasileiro. Não abordei as questões mais profundas enquanto análise, mas sim relatei uma observação crônica do que é corriqueiro, porém invisível.
No restaurante que fui não havia negros nas mesas, nem atendendo. Só havia negros na limpeza e na função silenciosa e silenciada de apenas, e tão somente, entregar a comida à mesa e sair o mais rápido possível. Na casta do atendimento, brancos descolados, com piercing, cabelos coloridos e “bem educados” atendem e fazem as sugestões de pratos, os negros limpam e entregam o pedido que não têm dinheiro para comprar, entrando em cena mudos e saindo calados.
Um almoço de uma família fica mais caro que o salário daquelas pessoas que, diga-se, sustentam uma família inteira por um mês. Nos corredores do shopping, a mesma coisa: famílias inteiras brancas, bem vestidas, perfumadas, comprando firulas e futilidades. Cada um compra o que quer, não estou fazendo juízo de valor ou individualizando a questão. Mas é preciso pensar o alcance de nossos atos e questionar nossos microcosmos — no caso do Brasil, questionar o país inteiro.
Por exemplo, ontem fui a uma pizzaria no fim da noite, já exausto, dormindo em pé, com o conforto de poder decidir: “Hoje como pizza”. Adivinhem o cenário: aguardando os pedidos, ainda que em um lugar relativamente barato, em Copacabana, vi brancos sentados e conversando, muitos turistas, passeando. Na limpeza, uma moça negra passando álcool nas mesas. Do lado de dentro do balcão, todos — TODOS — eram negros. Até que vi um branco: era o gerente.
Passamos por isso em todos os lugares que frequentamos. Vemos isso nos comerciais, nas escolas, nas lojas, nas nossas casas. Sabe por que muita gente não repara? Pelo fator invisibilidade. Aprendemos a não vê-los e a não ver o problema social que isso representa, porque muita gente os enxerga como o problema. Quando pensamos na tristeza da escravidão, temos que pensar que, historicamente, carmicamente, moralmente, o que vemos hoje é um retrato amarelado, velho e desbotado do que começou séculos atrás.
Quando pensamos se somos descendentes de portugueses, franceses ou italianos, temos que lembrar que pessoas negras não conseguem rastrear de onde são, pois seus antepassados foram arrancados de suas terras e jogados em jaulas e, por isso, são um povo cuja raiz se unificou na pátria África, sem nome de família, sem qualquer chance de identificar povos que os antecederam. Esse roubo de identidade se revela hoje no nosso cotidiano.
São tão invisíveis, mas tão invisíveis, que ninguém questiona o porquê de se sentar rodeado de brancos enquanto um negro limpa sua mesa e outro serve sua comida. Que ninguém vê problema em ir ao shopping e só ver negros nos ternos de segurança, nos macacões de limpeza e nas roupas brancas de babás.
Não é meu objetivo, como eu disse, individualizar a problemática, mas levar a cada indivíduo a reflexão sobre essa problemática. Basta observar o cotidiano. Como é o seu dia a dia? Como você vive e como você enxerga essa invisibilidade? Você observa a TV? Os comerciais, as séries, os filmes? Como você se sente? Você acha normal? Você acha que racismo não existe? Se sim, como você explicaria a segregação racial numa sociedade tão mista? Você ensina os seus filhos que isso é sintoma de uma doença social? Você conversa sobre isso? Te incomoda? Você ouve as pessoas sobre esse problema em vez de, como branco, definir o que é e o que não é preconceito? Você compreende que a questão da cor da pele é arrastada por séculos, criada por dominância religiosa, e que até hoje perpetua? O que você semeia?
O Brasil é um país de belas praias, com negros vendendo amendoim. De muita fé, com religiões de matrizes africanas perseguidas e destruídas. Com ótimos restaurantes, com negros servindo a comida. Com belas casas, com negros limpando. De favela glamourizada, com negros morrendo. Sim, porque tudo isso leva a um lugar certeiro: a morte. Deixa de ser apenas um tônus social. Leva ao brutal genocídio, também invisível, da população negra. Pela polícia, pela marginalização, pela segregação. Já parou pra pensar em como tudo isso é sutil, enquanto você bebe uma água de coco que você deixará na mesa e, provavelmente, um negro recolherá?
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